Década de 1970
Patrus Ananias
Eu sou natural de Bocaiúva, e mudei-me para Belo Horizonte após prestar vestibular na UFMG
para cursar Direito, no ano de 1972. Minha passagem pela FDUFMG ocorreu no período de
1972-1976, ou seja, durante o período da ditadura no Brasil.
Mas eu cheguei em Belo Horizonte já com uma consciência política razoável, pois no ano de
1966, aos 14 anos de idade, eu já havia sido eleito presidente do Diretório Estudantil de
Bocaiúva. E além da prévia atuação no movimento estudantil, eu tinha uma forte militância
através da Igreja Católica, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que tinham uma
importante presença com os pobres, excluídos e a juventude naquela época. Eu participava
também do Movimento de Justiça e Não Violência, cuja figura norteadora era D. Helder
Câmara, hoje reconhecido como patrono dos direitos humanos no Brasil.
Ainda em Bocaiúva, em 1969, tive também a oportunidade de conhecer o Prof. Edgar da Mata
Machado, que reforçou a minha relação com a esquerda católica. A trajetória tanto do Prof.
Edgar quanto do seu filho José Carlos que foi presidentes do CAAP e posteriormente foi morto
pela ditadura, influenciaram a minha escolha pelo curso de Direito e também pela Política.
Então em cheguei em Belo Horizonte já militando contra a ditadura, de forma que a
aproximação com o CAAP foi um movimento natural.
Estávamos sob a égide do Ato Institucional n. 05, desde 13.12.1968. Um ato que resultou no
fechamento do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas estaduais,
institucionalização da censura, além de restringir duramente os direitos, inclusive suspender a
garantia do Habeas Corpus para crimes de motivação política. Neste contexto, criamos o um
movimento chamado Habeas Corpus, na luta pela garantia de direitos.
A nossa relação com os professores era pautada pela busca permanente do caminho do
diálogo, sendo que a maioria do corpo docente era mais liberal, no sentido político, e
mantinha uma boa relação com os alunos, respeitando eventuais divergências de opinião. Mas
havia casos de alguns poucos professores com relações mais próximas com o regime ditatorial
que a relação acabava sendo mais difícil. Sabíamos também da existência de alunos infiltrados,
com o objetivo de delatar colegas por supostas "atividades subversivas", configurando uma
situação que em geral impunha que fossemos cuidadosos.
A experiência mais marcante que tive nesta época com certeza foi quando trouxemos o Prof.
Heleno Claudio Fragoso, reconhecido penalista e defensor dos direitos humanos, que além de
professor universitário, autor de livros, advogava em defesa de perseguidos políticos e
denunciava duramente a tortura neste período no Brasil.
Ele nos trouxe um forte relato de uma pessoa pobre, que lavava carros nas proximidades do
Fórum do Rio de Janeiro e que, atendendo a demanda desesperada sobretudo e mães e
mulheres que buscavam ajuda a parentes presos às vezes arbitrariamente, impetrava "Habis
Corpis", redigidos de maneira simples, sem muita formalidade, como aliás é permitido a este
instrumento jurídico. Um grupo de advogados cariocas se sentiu de alguma forma
desrespeitado pela prática desta pessoa humilde e iniciou um movimento entre advogados
para permitir que "essas pessoas" e continuassem impetrando Habeas Corpus com erros de
redação e grafia, além do excesso de informalidade.
O Prof. Heleno Fragoso se recusou a aderir a tal movimento, e ainda enfatizou que esse
lavador de carros estava prestando um serviço nobre a pessoas simples, que não tinham
acesso aos escritórios chiques da Av. Rio Branco, que agora queriam censurar a atuação na
verdade admirável desta pessoa. Após a conferência, os professores da Faculdade foram
convidar o Prof. Heleno para jantar. Mas ele respondeu que ele estava ali a convite dos alunos
e se eles quisessem, o jantar seria na companhia deles. E assim o Prof. Heleno foi levado pelos
alunos a Cantina do Lucas, no Ed. Maleta, onde continuou a compartilhar suas experiências
conosco.
No período em que fui vice-presidente do CAAP, o presidente era Mário Lucio Quintão Soares
que, posteriormente, veio a ser meu colega de docência na PUC-MG. Mantemos até hoje uma
fraterna relação, assim como com o Marcelo Leonardo, que participou ativamente da
organização desta conferência com o Prof. Heleno Fragoso. Outros colegas, todos da área do
Direito do Trabalho (minha área de atuação profissional e docência), com quem ainda
mantenho bons contatos são o Desembargador Marcus Moura, o Desembargador João Bosco
Pinto Lara, ambos ex-presidentes do CAAP, e o Ministro do TST José Roberto Pimenta.
Toda essa experiência com o CAAP reforçou na minha vida o compromisso com as liberdades
democráticas, sendo o movimento Habeas Corpus um marco na luta contra o AI-5. As pautas
naquela época giravam inevitavelmente em torno do clima de horror, da existência de tortura
praticada pela ditadura. Na faculdade não se estudava sequer a Constituição da República pois,
neste período, a rigor, não tínhamos Constituição.
A Constituição de 1967 já havia sido votada por um Congresso amordaçado, parlamentares
presos e perseguidos num evidente regime de exceção. E a EC n. 01/1969 foi simplesmente
outorgada pela ditadura, imposta.
Nesse contexto, a luta era sempre pela volta do Estado Democrático de Direito, Direitos
Humanos e Liberdades Democráticas.
Acredito que o movimento estudantil é uma escola para a vida, assim como toda experiência
que nos leva à construção de um espaço coletivo, de vivência comunitária, de construção do
bem comum. A construção do CAAP pode ser uma escola de cidadania, de convivência mais
fraterna, para quem estiver disposto a este tipo de construção.
José Edgard Penna Amorim Pereira
Meu nome é José Edgard Penna Amorim Pereira, nasci em 1959 e estudei na
Vetusta "Casa de Afonso Pena" de 1978 a 1982.
Desde o Curso Básico, que era então ministrado na FAFICH, localizada na Rua
Carangola, bairro Santo Antônio, fui "cooptado" pelos então dirigentes do
CAAP, que visitavam as turmas iniciais para convidarem os alunos a
participarem do movimento estudantil (ME).
Eu já tinha uma formação política de família: meu pai - que aliás era Professor
da Faculdade (licenciado de 1979 a 1982) - tinha sido sindicalista bancário e
transmitiu a seus filhos uma compreensão de entidade que muito me ajudou a
entender o papel do CAAP na escola e na sociedade. Daí não foi difícil eu me
disponibilizar para as tarefas do ME.
A composição do corpo discente não era tão plural como hoje. No turno da
manhã predominavam filhos de classes média-alta e alta; à noite, alguns
trabalhadores um pouco mais velhos que nós, muitos servidores públicos -
para quem o curso era uma possibilidade de promoção na carreira -, e não
poucos policiais civis e militares infiltrados pelos órgãos de repressão do
governo para vigiar os militantes estudantis.
Embora houvesse boa urbanidade na relação com os professores, muitos deles
eram, ideológica ou politicamente, conservadores, ou meramente se sentiam
incomodados, por acharem que atrapalhávamos suas aulas, com a atuação
das lideranças do CAAP nas salas. Da parte do ME, percebia que os
professores eram vistos muitas vezes como representantes do governo, pelo
só fato de integrarem a instituição, que era federal e comandada por dirigentes
escolhidos pelo regime militar. Na direção da Faculdade, porém, estava o Prof.
José Alfredo de Oliveira Baracho, um democrata que mantinha boa relação
com os líderes estudantis e que facilitou bastante o nosso trabalho.
As pautas do CAAP, quando comecei, estavam principalmente voltadas para
as grandes bandeiras democratas da Política da época: o fim da ditadura
militar, com o restabelecimento das liberdades democráticas; a anistia ampla,
geral e irrestrita; a assembleia nacional constituinte livre, soberana e
democrática.
Não eram, porém, bandeiras que atraiam a grande massa dos
estudantes. Passamos então a identificar metas mais próximas da realidade
dos estudantes - até porque era fundamental legitimar nossa representação -,
a mais importante das quais a instalação do "Curso de Verão", consistente em
uma reposição concentrada de aulas, no mês de janeiro, de determinadas
disciplinas nas quais tivesse havido maior número de reprovações, para
possibilitar que muitos estudantes não perdessem um semestre no curso
apenas por conta de uma disciplina que era pré-requisito de outra. A demanda
era tão justa e necessária que não foi difícil o CAAP organizar, em 1980, pouco
antes de minha gestão na Presidência, uma greve dos estudantes que durou
até ser regulamentado, pela Congregação, o "Curso de Verão".
Lamentavelmente, ele não terá durado mais de dois anos, principalmente
devido à dificuldade de disponibilização de professores para trabalharem em
período de merecidas férias.
Contudo, a atuação do CAAP seguia as orientações gerais do DCE-UFMG, da
UEE-MG e da UNE, motivo por que participávamos dos eventos de resistência
ao regime militar de uma forma especial, até porque a tradição de luta do
CAAP e a localização central privilegiada da Vetusta contribuíam para a
organização e a realização das concentrações e passeatas dos estudantes.
Por isto mesmo é que minha experiência mais marcante como membro do
CAAP tenha sido participar ativamente da organização do Iº Encontro Nacional
dos Estudantes de Direito (ENED) em abril de 1979. Acolhemos em BH
estudantes de inúmeras partes do Brasil, e o desafio de montar toda a
infraestrutura - como acomodação, alimentação, sonorização dos locais etc. -,
com recursos apenas arrecadados dos alunos e alguma ajuda da Fundação
"Prof. Vale Ferreira", foi realmente enorme. As conquistas foram principalmente
a contribuição para a Reconstrução da UNE, em Congresso realizado um mês
depois, em Salvador, e algumas amizades de não mineiros que perduram até
hoje, como inúmeras de
companheiros do CAAP.
Daqueles momentos, levo para a vida a compreensão da alteridade sob um de
seus princípios fundamentais que é a relação de interação e interdependência
com as outras pessoas e, nesta linha, a solidariedade comunitária e social, no
sentido de que a entrega de sua força de trabalho, suas energias e sua
inteligência para um objetivo comum, e não pessoal, compensam na nossa
vida.
Acredito que isto justifica que os alunos da Vetusta tenham a experiência de
participar das atividades do CAAP, de onde o dom de ouvir e reconhecer o
diferente lhe vai acompanhar para o resto da vida, como tem sido para mim,
como desembargador, inclusive.